segunda-feira, 7 de julho de 2008

A Arte no Tempo

A memória mais arcaica da humanidade está registada na simbólica rupestre, seja ela gravada, pintada ou até esculpida. A ânsia de transferir para a rugosidade da pedra conceitos tão imateriais quanto perenes como sejam a codificação da imagem de um animal, de uma espiral ou uma qualquer representação humana é um fenómeno tão universal como a organização da vida em sociedade por mais recuados que sejam os tempos. 
A tomada de consciência da importância da arte rupestre para o conhecimento do ordenamento social e do pensamento do passado é relativamente recente. Por isso, o lote de sítios rupestres que há pouco mais de 30 anos começaram a ser classificados pela UNESCO como Património da Humanidade vai alargando-se de ano para ano. 
A arte rupestre ganhou foros de cidadania em Portugal com a celebrada polémica do Côa, ou gravuras versus barragem, como ficou conhecida na linguagem corrente. Na que foi sem dúvida a mais importante polémica político-arqueológica do século XX português. E isso deixa marcas, porque o Côa, parece, ou se ama ou se detesta... 
Mas o nosso país conserva ainda um vasto repositório rupestre disseminado por cimos serranos e vales fluviais, na sua generalidade ainda por identificar e/ou estudar. E que vão muito para além do Côa. Porém, este é o lugar cimeiro do nosso tempo rupestre! Por isso, nele nos deteremos mais amiúde.
Infelizmente, não pelas melhores razões, a grande Arte do Côa continua a ser muito desconhecida da generalidade das gentes. Sendo o nosso mais importante conjunto de sítios monumentais da pré-história antiga, razões várias têm impedido a sua fruição (e compreensão!) à grande maioria dos seus visitantes "profanos". Quer porque os sítios são de difícil acesso e muito esparsos em vastíssimo território, quer porque no Côa mais de 99% dos seus grafismos são gravados, desgastados pelas pátinas do tempo, delidos já quase no rio do esquecimento. 
Por outro lado, o que torna tão importantes os sítios do Côa é afinal a omnipresença da sua arte paleolítica, e esta é uma arte da ilusão, um permanente desafio mesmo para os que nela vão persistentemente trabalhando, como é o meu caso. O jogo entre forma e conteúdo em nenhum lugar dos nossos sítios rupestres atinge um tal grau de profundidade como, por exemplo, na paleta de auroques, cabras e humanos animalescos da notável Rocha 24 da foz da Ribeira de Piscos, uma das mais exigentes rochas decoradas da pré-história em Portugal. 
E o entendimento leigo da arte plistocénica do Côa exige também ele tempo e disposição ao entendimento. Para que não continue a vigorar no "reino cadaveroso" a luxúria da incompreensão.
A meses de inaugurarmos o tão desejado Museu do Côa que, estou seguro, para muitos será uma revelação, neste blogue se irá dando conta, com forte apelo à imagem, de alguns aspectos arqueologicamente mais interessantes em particular da sua arte paleolítica, afinal a justificação primeira para se ter abandonado uma barragem já em construção e ter o nosso país, por isso mesmo, suportado a maior indemnização paga no mundo para salvar sítios rupestres. Isto que devia ser motivo de orgulho para Portugal e suas gentes, continua ao invés a ser antes causa de tanta incompreensão e jogos de palavras mais ou menos aceradas, que apenas atribuo à ignorância do que se discute e/ou à inconstância dos tempos.
O Côa é pois dominante. Obsessivamente dominante. Mas não exclusivo. Como se verá...

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